25 de agosto de 2009

O rio das Quatro Luzes - Mia Couto

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O coração, a árvore - onde quiserem voltam a nascer
(adaptação de um provérbio moçambicano)
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Vendo passar o cortejo fúnebre, o menino falou:
- Mãe: eu também quero ir em caixa daquelas.
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A alma da mãe na mão do miúdo estremeceu. O menino sentiu esse arrepio, como corrente de corpo se desalmando. A mãe puxou-o pelo braço, em repreensão.
- Não fale nunca mais isso.
Um esticão enfatizava cada palavra.
- Porquê, mãe? Eu só queria ir a enterrar como aquele falecido.
- Viu? Já está falar outra vez?
Ele sentiu a angústia em sua mãe já vertida em lágrima. Calou-se, guardado em si. Ainda olhou o desfile com inveja. Ter alguém assim que chore por nós, quanto vale uma tristeza dessas?
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À noite, seu pai foi visitá-lo na penumbra do quarto. O menino colocou a dúvida entre os dois: nunca o pai lhe dirigira um pensamento. O pai avançou uma tosse solene, anunciando a seriedade do assunto. Que a mãe lhe passara os seus soturnos comentários no funeral. Que se passava, afinal?
- Eu não quero mais ser criança.
- Como assim?
- Quero envelhecer rápido, pai. Ficar mais velho que o senhor.
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Que valia ser criança, se lhe faltavam meninices? Este mundo não estava para infâncias. Porque nos fazem com esta idade, tão pequenos, se a vida aparece sempre adiada para outras idades, outras vidas? Deviam-nos fazer já graúdos, ensinados a sonhar com conta medida. Mesmo o senhor, meu pai, passa a vida louvando a sua infância, seu tempo de maravilhas. Se foi para lhe roubar a fonte desse tempo, por que razão o deixaram beber dessa água?
- Meu filho, você tem que gostar viver, Deus nos deu esse milagre. Faça de conta que é uma prenda.
Mas ele não gostava dessa prenda. Não seria que Deus lhe podia dar outra, diferente?
- Não diga disso, Deus lhe castiga.
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E a conversa não teve mais diálogo. Fechou-se sob promessa de punição divina. O menino permanecia em desistência de tudo. Sem nenhum portanto nem consequência.
Até que certa vez ele decidiu visitar seu avô. Certamente ele o escutaria, com maiores paciências.
- Avô, o que é preciso para se ser morto?
- Necessita ficar nu como um búzio.
- Mas eu tanta vez estou nuzinho.
- Tem que ser leve como lua, além da nuvem.
- Mas eu já sou levinho como a ave penugenta.
- Precisa mais: precisa ficar escuro na escuridão.
- Mas eu sou tinto e retinto. Pretinho como sou até, de noite, me indistinto do pirilipampo avariado.
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Então, o avô lhe propôs o negócio. As leis da vida fariam prever que ele fosse retirado primeiro da vida. Pois, ele falaria com Deus e requereria mui respeitosamente que se procedesse a uma troca: o miúdo fosse transferido em lugar do avô.
- A sério, avô? O senhor vai pedir isso por mim?
- Juro, meu filho. Eu amo demais viver. Vou pedir a Deus.
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E ficou combinado e jurado. A partir daí, o menino visitava o avô com ansiedade de capuchinho vermelho. Desejava saber se o velho parente não estaria atacado de doença, falho no respirar, coração gaguejado. Mas o avô continuava direito e são.
- Tem rezado a Deus, avô? Tem-lhe pedido consoante o combinado?
Que sim, tinha endereçado os ajustados requerimentos. A troca das mortes, o negócio dos finais. Esperava deferimento ensinado pela paciência. Conselho do avô: ele que, entretanto, fosse meninando, distraído nos brincados. Que ainda agora, o mais que ele se lembrava era o mais antigo de sua existência. E lhe contou os lugares secretos de sua infância, mostrou-lhe as grutas junto ao rio, perseguiram juntos pegadas de bichos. O menino, sem saber, gozava os amplos territórios da infância. No contar do avô o moço se criançava, convertido em menino. A voz antiga era o pátio onde ele se adornava de folguedos. E assim sendo.
Uma certa tarde, o avô visitou a casa dos seus filhos, sentou-se na sala e ordenou que o neto saísse. Queria falar, a sós, com os pais da criança. E o velho deu entendimento: criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece - nascermos em tempos nunca havidos. E mais nada falou. Agora, disse ele, já me vou, porque senão ainda adormeço com minhas próprias falas.
- Já assim velho, sou como o cigarro: adormeço na orelha.
Se ergueu e, na soleira, rodou como se tivesse sido assaltado por pedaço de lembrança. E anunciou que estava sofrendo um cansaço. Que era natural, respondeu apressado o filho. O velho emendou, sereno.
- Não é desse cansaços que nos pesam. Ao contrário, agora ando mais celestial que nuvem.
Que aquela fadiga era a fala de Deus, mensagem que estava recebendo na silenciosa língua dos céus.
- Estou ser chamado. Quem sabe esta é nossa última vez?
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O casal recusou despedir-se. Acompanharam o avô a casa e sentaram-no na cadeira da varanda. Era ali que ele queria passar a última fronteira. Olhar o rio, lá em baixo. E ali ficou, em silêncio. De repente, ele viu a corrente do rio inverter de direcção.
- Viram? O rio já se virou.
E sorriu. Estivesse confirmando o improvável vaticínio. O velho cedeu às pálpebras. Seu sono ficou sem peso. Antes, ainda murmurou no ouvido de seu filho:
- Diga a meu neto que eu menti. Nunca fiz pedido nenhum a nenhum Deus.
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Não houve precisão de mensagem. Longe, na residência do casal, o menino sentiu o reverter-se o caudal do tempo. E ele se achou mais celestial que nuvem. E os olhos do menino se intemporaram em duas pedrinhas. Mas, no leito do rio, se afundaram quatro luzências.
Da feição que fui fazendo vos contei o motivo do nome deste rio que se abre na minha paisagem, frente à minha varanda. O rio das Quatro Luzes.
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23 de agosto de 2009

Dos desaprendizados

Não, ainda nao sei piscar,
mas sigo fotografando o caminho.

*o olhar que fotografa é de Thomas, pernambucano de Arcoverde.

22 de agosto de 2009

Claro calar sobre uma cidade sem ruínas

Leminski
Em Brasília, admirei.
Não a niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra a dentro.
Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.
Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.
Muito me admirastes,
muito te admirei.

20 de agosto de 2009

Cacau

Antes foi fruta.
Cacau era o nome. Motivo de plantio e lucro na Bahia. Evangelista trabalhou na lavoura até deixar disso. Rumou para outras terras, caminhou para o Ceará. Foi. Deixou o Cacau.
Ceará era terra de outros frutos.
Mas chegando lá a fruta não lhe deixou. Já na pele, virou apelido... Assim, um nome batizado informalmente por amigos, no meio de uma partida de futebol:
- Ô Cacau!
Desses nomes que não são dados pelo nascer, mas sim pela caminhada, construídas a cada pisada. E em todo canto era assim chamado. Foi assim que depois deixou de lado o Xavier, seu segundo nome.
E em cada filho que chegava, deixava um pouco mais de si. Um a um, cada um: Cacau da Costa.
Nome tornado sobrenome por desejo mesmo, batismo de sua história, todos os onze: Cacau.
Carmelia Cacau é uma das filhas, hoje com 86 anos.
Essa história fui sabendo no caminho.
Entre São Paulo e Ceará um pouco, entre Fortaleza e Itapipoca outro pouco, entre Itapipoca e Amontada outro tanto, até encontrar Lagoinha, que já nem era Lagoinha, já virada cidade tinha sido renomeada: Aracatiara.

Essa história fui sabendo no caminho, entre estradas e cidades.

19 de agosto de 2009

Pra me ler

Pra me ler
Ler quem pra
Ler me quem
Ler me pra

Pra quem me pra
Quem me quem
Me quem quer
Me quem quem

Quem me ler
Me quem
Me lem
Me prem

Me pra mer
Mer me quem
Quem quer
Em!?
(escritos do Robson - esse menino baiano aqui)

18 de agosto de 2009

BSB



Saindo de zebrinha, número 30!
Rumo ao Hotel Nacional pra discutir Politicas Públicas e Ludicidades.
O som na minha cabeça que entoa "Faroeste Caboclo". Lembro da minha passagem por essa via, vindo de Goias, com o Rafa e a Nati, de carona numa ambulancia, olhando a paisagem por aquela pequena janelinha.
Dessa vez parece tudo maior, largas paisagens, predios cinzas, praças extensas de cerrado. Cinza, Amarelo tímido quase bege, as vezes um vermelho surge entre as folhagens, lindo, iluminando a paisagem. Apesar disso não gosto muito das primeiras sensações... Apesar do povo simpatico que me dá informações de dentro da zebrinha. Não entendo bem estas localizações, tudo são combinações de número e letras.
Caminho até o hotel e tudo parece duma decadencia nova. No hotel a visão não muda: uma placa de entorno aveludado de cor desbotado e quase já saindo avisa Rainha Elisabeth passou por aqui... Pedancia que enquadra a decadência, nova.
De qualquer modo a expectativa do debate sério e lúdico me anima. A viagem inicia...

* Foto capturada aqui.

17 de agosto de 2009

conocer un lugar


es como volver a casa
y encontrar lo que estaba aqui adentro
y uno no recordaba..

Capturei essa frase do flickr da Sofia Jiménez, porque as palavras me vestiram como uma roupa velha e aconchegada.. Já a foto é deste belo arquivo.
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9 de agosto de 2009

perder-se na cidade de São Paulo...

Preciso ir varias vezes pra um mesmo lugar pra conhecer seus caminhos, suas curvas, seus traçados. Essa semana pela terceira vez saindo do mesmo lugar, consegui chegar e ir embora, assim sem me perder. Sempre que vou pro Centro me perco. Sempre fui de deixar perder-me nestas ruas, de meus pensamentos...

6 de agosto de 2009

4 de agosto de 2009

Pela primeira vez,

ouvi minha vó ao telefone.
No outro lado da linha,

a voz mais linda que já ouvi.
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pausa para engolir a palavra

2 de agosto de 2009

Da zoada me carregando...

Já acampei no meio do mato, na praia e dentro de uma enorme caverna, mas o som dos morcegos não me incomodavam tanto assim... Dentro dessa casa, no meio do sertão, dormir assim, sem nenhum mosqueteirozinho está parecendo muito trabalhoso...
Já deitei na rede. Já fui pro chao. Revirei. Desvirei.
Mesmo na rede coberta pelo lençol, essas danadas das muriçocas vem se nenhum pudor. E o proprio cobrir-se deveras já e insuportavel nesse calor.
E alem disso, é uma sinfonia. Passaracos cantam esporadicamente voando, grilos, sapos, dois burricos estacionam em frente a casa, o barulho de duas latas batendo se parar e principamente uma orquestra filarmonica de potentes muriçocas.
E se fosse apenas esses sons... mas as ideias quarando no varal não me deixam dormir.
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*lembrei desses escritos essa semana ao ver Vau de Sarapalha, uma peça do Grupo Piollin adaptada de um dos contos de Guimarães Rosa. Lindissima. Algumas das cenas os primos se cobrem com seus lençois reclamando dos mosquitinhos. **ah, depois desta noite, ao acordar, em Aracatiara, fui descobrir que as latas na verdade eram sinetas nos pescoços de duas vaquinhas que se alimentavam por ali.