29 de abril de 2009

Das muitas filhas,

uma delas, desde pequenina diferenciava-se das outras meninas. Desde pequenina era rodeada de bichos, morava no sertão. Mutuca era o nome de seu melhor amigo, um pequeno potro. Ela em seu jeito não aceitava qualquer coisa que lhe fazia. E tinha seus modos de dizer não. Mas criança não é comum ser escutada não. Então ela arranjava os seus jeitos de se expressar.
Um dia, o pai inventou de subir em Mutuca pra provoca-la. Ela ficou com medo que ele em todo seu peso machucasse o pequeno potro, respondeu de pronto à provocação, ralhou com ele de seu jeito:

A primeira bosta de cavalo que viu em sua frente - e tinha muita por aquelas terras - atacou de pronto. Na mira. Bosta de cavalo depois de um tempo fica endurecida, quase pedra.
Já prevendo o rosto de brabeza e a futura surra, saiu em disparada. Foi se esconder com seu bando: Mutuca e a passarada que lhe acompanhava - seus companheiros de infância.

Naquele dia, ao chegar onde ninguém lhe alcançaria, viu algo como sangue no lombo do bicho de tanta estima, apavorou-se, achou que ele estaria machucado. Chorou muito, por toda manhã, com a possibilidade de perde-lo.

Chegando em casa, escondida, foi falar a sua mãe do amigo machucado.
A mãe lhe contou. Estava não. Era ela mesma, que mesmo muito novinha, estava em seu momento de menstruar-se pela primeira vez. Como dizem "tornar-se mocinha".

Ela foi crescendo um pouco mais e foi quando estava nesta dita “idade pra casar”, foi pedida em casamento. Tudo nos conformes como ditava os costumes. Os tratos eram feitos entre os homens, o pai e o futuro marido.

Esta moça não era de aceitar tudo que lhe diziam, mas neste caso matutou um pouco mais... Por gosto não, mas viu uma possibilidade de sair dali de onde estava. Casou.

Fez as malas de tristeza. De papel passado, como dizem, deste modo engomadinho seria sua fuga. Arrumou as poucas roupas e a também a saudade já pré-vista no olhar de sua mãe.

Foi. Dizendo que voltaria.

São Paulo. Desta época pouco se sabe, pois esse tempo fica guardadinho dentro de um baú.
Fica ali, fingindo-se esquecido.

Anos depois, tanto havia mudado.
Anos depois voltou para buscar quem nunca esquecera: Carmelia.

24 de abril de 2009

Quando chegou aqui,

ela tinha uma fisionomia de sertão.
Pois o sertão tem toda uma espécie de vida muito particular. Mandacaru por exemplo, é um cactus nativo do nordeste. Sobrevive a periodos grandes de seca, porque dentro dele tem uma reserva de água, em seu caule e até nos espinhos. Dele nasce uma flor muito bonita. Essa flor, a flor do mandacaru, tem um tempo seu de nascer: só a noite. Dizem que quando floresce é sinal de fertilidade no sertão:

“Mandacaru quando fulora na seca é o siná que a chuva chega no sertão.
Toda menina que enjôa da boneca é siná que o amor já chegou no coração...”
(L.Gonzaga)

Desse modo mesmo, minha vó tem um jeito muito dela de fazer as coisas. Seus desenhos são como aqueles de cordel. Sua caligrafia é das mais bonitas. E seu cantar... Tem um jeito de quem nasce lá.

Um dia, há anos atrás, resolvi paparicar a dona. Paparicar assim, abraçar, encher de beijo... Isso naquela época seria um desafio... A poeira da seca havia constituído uma camada que lhe protegia deste tipo de manifestação. Carmelia com seus braços forte quase sempre me jogava longe e ralhava comigo:
- Deichta de bestage bicha besta!
Eu achava graça e fiz desse um exercício diário. Já não sei qual foi o dia que essa casca amoleceu, mas hoje essa mulher adora um cheiro e até fala de suas saudades.

8 de abril de 2009

Da moça Carmelia

Nascida
São Bento, Itapipoca, Ceará.
Vir para São Paulo foi conseqüência.
Dizer não, ali no sertão, pra ela,
mulher, mulher do sertão,
Chegou a pensar em dizer,
Chegou a pensar em fugir,
Chegou a pensar,
Mas não, não era comum isso não.
Mulher dizia sim as escolhas,
dos outros, homens.
Pai. Depois marido.
Resistir era o rotineiro.

5 de abril de 2009

Delicadezas do sertão

A pequena Soani não queria comer não.
Mas aquelas bolachas eram especiais, pois vinham com fadas.
Bastava abrir o pacote, que elas escapuliam voando.
Pelo menos assim mostrava o comercial da TV.
A pequena esperava ansiosa pela abertura do pacote,

queria ver a prometida fada.
D. Carmelia se esforçava para que a neta visse a fadinha

abria rapidamente o pacote, fazia da abertura um espetáculo teatral e dizia:
- Ih a bicha escapuliu!
Só assim para a pequena comer.

4 de abril de 2009

Café com Carmélia

Minha vó conta uma lembrança por dia.
A cada gole de café um conto.
Conto real e até fantasioso.
Esses fantasiosos são os que contava pras netas quando eram pequenas.
Não tinha negócio de Cinderela não, tinha sim a história do João Cagão.
Depois das netas crescidas, ela esqueceu dessa história.
Não lembrava de jeito nenhum.
Mas dia desses lembrou.
Tomando café.

3 de abril de 2009

direito à Brincar

Nada havia de mais prestante em nós senão a infância. O mundo começava ali. M. Barros,

trecho Memórias Inventadas

2 de abril de 2009